sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Eu, você, o outro: Nós?

Acordei de um sonho estranho. Revelador. Tentava eu atravessar uma grande avenida cuja confluência envolvia o cruzamento de veículos e pedestres de várias direções, exigindo, portanto, redobrada atenção de cada um dos participantes dessa travessia necessária. Enquanto aguardava a abertura do sinal, veio-me à mente a história relatada por Hermann Hesse num de seus livros (Viagem ao Oriente, se não me falha a memória), em que mais ou menos conta o seguinte: um velho barqueiro oriental é reconhecido por um dos passageiros no momento em que faz a travessia de um rio numa remota região indiana. O ocidental o interpela, indagando as razões de ele ter abandonado a vida de fausto que então levava quando o conheceu no Ocidente. O velho não se deu por achado e nada respondeu. Seguiu firme no leme da embarcação, olhos fixos no infinito, do outro lado da margem que deveria alcançar. Impaciente, diante da chegada iminente, o ocidental insistiu em saber. O velho sorriu. Aportou, olhou para seu interlocutor e recomendou que se sentasse num banquinho sob uma grande árvore. Passou a relatar etapas de sua vida na juventude exagerada que levara, experimentando tudo que o mundo material lhe pudesse proporcionar, no afã de saciar seu espírito exigente de aventuras e de experiências extraordinárias. O tempo passou. E com esse passar ele percebeu que a passagem é o melhor de tudo. As pessoas estão loucamente apressadas em passar de um estágio a outro, que, por vezes, não chegam a perceber a beleza da passagem, e que ele mesmo perdera tempo demais em suas buscas, que acabaram se revelando vazias, razão pela qual ele, agora, encontrara a tranqüilidade, enquanto observava os afoitos rostos de seus eventuais companheiros de viagem, em buscas frenéticas sobre o que poderiam encontrar do outro lado, sem se dar conta das belezas oferecidas pelas ondulantes águas do rio, do frescor do vento no rosto, da mudança de tom no céu durante o balanço da embarcação. Da alegria de partir de um ponto e chegar seguro a outro, utilizando uma velha embarcação da qual ninguém se lembrou de pedir garantias... Nesse exato momento – pondera o velho – ele se deliciava com o prazer de lhes proporcionar uma travessia suave e tranqüila.
O sinal abriu. Apressei-me em avançar, como as outras pessoas a meu lado. Mas, de algum ponto que nos escapou surgiram carros e motos em grande zoada, obrigando-nos a voltar rapidamente para a calçada, enquanto ouvíamos uma caçoada do bando que passava – Mas vocês, hein?
Finalmente conseguimos chegar ao outro lado. E lá estava, na calçada, com sua moto, um dos caçoadores. Sem capacete, retirando encomendas da moto, assustou-se quando dele nos aproximamos. Sorriu nervosamente, amarelo, e fez menção de desculpar-se – Nada disso é preciso, disse-lhe uma velhinha a meu lado. Você, agora, é um de nós.
Quem são os outros?

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