sexta-feira, 9 de abril de 2010

Um, dois, feijão com arroz...ou a greve de fome

Lendo um artigo de jornal me vem à mente essa antiga brincadeira da distante infância, que começava assim: "Um, dois, feijão com arroz; três, quatro, feijão no prato..." e seguia em frente com outras rimas simples do cotidiano, só para enaltecer o valor nutritivo do feijão, que é considerado uma preferência nacional. Durante muito tempo -talvez por causa de um complexo de inferioridade- considerávamos essa escolha uma opção menor. Ainda mais quando comparada aos ovos com bêicon da refeição matinal dos americanos do Norte. Passou o tempo. E outro dia ficamos sabendo que o Brasil está certo: arroz com feijão foi considerado, em pesquisa internacional, o prato mais bem balanceado para a regularidade do organismo humano. O complemento básico, com ovo e/ou bife e salada, é a pedida mais tradicional. Mas pode ser bem variado, sem mexer na combinação do feijão-com-arroz.
Recuperada a auto-estima, o brasileiro ainda viu valorizado o feijão, numa série que ficou famosa na tevê, "João e o pé de feijão". O grande salto cultural surgiu com uma canção do Gonzaguinha- "Dez entre dez brasileiros preferem feijão...", que virou 'hit' nacional como tema de novela da Globo. Além de preferência nacional, o feijão modela o corpo. Dizem que, além da influência africana, a silhueta da mulher brasileira é determinado pelo consumo do feijão. Daí, chega-se à máxima de que, no Brasil, até japonesa tem peito e bunda. É o feijão!
Lembro que nos idos de longínquos anos 1970, um livro para controle de peso e modelagem da silhueta, "A dieta revolucionária do dr. Atkins", fez sucesso no mundo todo, menos no Brasil. É que, dentre outras coisas, o Dr. Atkins mandava cortar o feijão.
O brasileiro só reduziu o consumo de feijão numa época em que o preço estourou. Hoje, há quem corte o feijão por opção. Ou imposição. Da ditadura da moda, que determina uma estética visual europeia, distanciada da realidade brasileira. A partir daí, a febre da adequação ao figurino imposto pelas agências de modelos arrastou multidões de adolescentes obcecadas pelo modelito "campeã de natação": nada de peito, nada de costas, desencadeando uma onda anoréxica que levou muitas à morte. Agora, chegou às crianças. Contardo Calligaris, em artigo na Folha de S.Paulo, cita pesquisa que aponta "81% das crianças (norte-americanas) de 10 anos estariam com medo de ser gordas, e 50% das meninas dessa idade declararam estar fazendo regime (...) hoje, a forma e o peso preocupam até as crianças".
Ao contrário de culpar a preguiça e o sedentarismo pelo aumento de peso, Calligaris cita estudiosos do comportamento para inferir que "quando alguém sente que tudo na sua vida está fora de controle, ele sente também que os alimentos, o peso, o exercício (físico) são coisas que, em princípio, ele poderia controlar".
O psicanalista Contardo Calligaris considera que, diferentemente do que acontece com nossa vida amorosa e profissional, "acreditamos (com certa razão) que nosso peso e nossa forma dependem de nós". Para ele, é tentador propor uma equação: quanto menos estamos no controle de nossa vida (amorosa, profissional, social e mesmo moral), tanto mais nos preocupamos com peso e forma, que, bem ou mal, podem ser controlados. Citando outro profissional terapeuta, resume assim a fala de um paciente: "Se você não me escuta e não deixa nunca que minha opinião conte, posso ao menos escolher não comer nada".
Diante de tal declaração, Calligaris observa: "De repente, a greve de fome dos presos políticos pode ser um modelo para entender o que acontece nos transtornos alimentares e em nossa preocupação com peso e forma. Certo, na greve de fome os presos põem a vida em risco para promover uma causa (a sua própria ou outra). Mas eles também exercem, heroicamente, o que lhes sobra de liberdade; eles não são escutados, estão encarcerados, não podem nada, mas há algo que eles controlam: sua própria ingestão de alimentos".
Na visão dos terapeutas, a obsessão por regime e exercício é própria de quem não controla nada. Como último recurso, tenta controlar sua alimentação, seu peso e sua forma. E Calligaris conclui: "Só nos resta admitir que não controlamos nada, como os presos".

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Liberdade de expressão...livre arbítrio?

O ser humano é diferenciado de toda a criação por uma particularidade única: ele pensa! Mas pensar dá trabalho. É preciso ter tempo. Por isso é que o jornalista Jefferson Barros, estudioso de Gramsci, escreveu o pequeno grande livro "A função dos intelectuais numa sociedade de classes", determinando: a função do intelectual é pensar. É que o trabalhador não dispõe de tempo. O operário, o agricultor, o executor de tarefas na sociedade de classes vive assoberbado de ocupações que não lhe deixam tempo para pensar. Talvez a lógica capitalista seja exatamente esta: não permitir que o operário pense. Há alguns anos, dourando a pílula da tecnologia, vendia-se a ideia de que a robotização viria para executar tarefas que oprimiam os trabalhadores, e que lhes deixaria mais tempo para o lazer e a convivência familiar. Estudos econômicos mostram que é mais produtivo turno único de cinco a seis horas, em vez dos dois turnos que perfazem oito a nove horas diárias. Mas não se fez a alteração anunciada, que permitiria o tempo livre ao assalariado. Com tempo livre, ele poderia pensar. Aí, revela-se a terceira faceta do pensar: é perigoso. Além de dar trabalho, e de requerer tempo, pensar é perigoso. Ao pensar, o ser humano pode querer se expressar, comunicar. O livre arbítrio com a liberdade de expressão pode tornar-se perigosa arma, se utilizada tendenciosamente.

Leio artigo do jornalista Palmério Dória, publicado nesta Sexta-feira Santa. Sob o título "Crime e Castigo", em que conta importante passagem da História recente do Brasil, que teve trajetória absolutamente obtusa, beneficiando um político em detrimento de outro, em razão única e exclusiva da utilização tendenciosa de um fato, através de relato inexato de um jornalista, que provocou mudança radical na cena política brasileira em Agosto de 1954.

O jornalista em questão é Armando Nogueira -morto esta semana aos 84 anos- e o fato, o alardeado 'atentado' contra o político e jornalista Carlos Lacerda, na rua Toneleros, na madrugada de 5 de agosto de 1954. Palmério relata que próximo ao local estava Nogueira com amigos, e "assistiu ao pandemônio que se instalou naquela rua de Copacabana, paralela à praia famosa no mundo inteiro. Dali, Armando partiu para contar nas páginas do Diário Carioca, onde trabalhava, na primeira pessoa, aquele que viria a ser carimbado pela imrensa de então como o Crime do Século. Crime que a oposição a Getúlio Vargas, incendiada pelo próprio Lacerda, iria explorar com tal sanha, que levaria o "pai dos pobres" ao suicídio - aliás, este sim o crime do século 20".

O título do artigo remete ao livro homônimo em que Dostoievsky explora a psique humana revelando que, ao cometer um crime, seu autor tem a necessidade de confessá-lo, vivendo atormentado enquanto não o fizer. Por isso, em "Crime e Castigo", o escritor russo mostra um atormentado Raskolnikov, jovem que cometeu brutal assassinato, teoricamente um crime perfeito, porque sem provas, que acaba por se apresentar voluntariamente para a confissão ao delegado.

Palmério Dória explica como foi a confissão de Nogueira:

"No começo dos anos 1980, Armando Nogueira, então todo-poderoso diretor de jornalismo da Rede Globo, reencontrou o ex-pistoleiro Alcino - que havia cumprido 21 anos de pena (por ter matado a tiros o major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz na madrugada de 5 de agosto). Foi durante a gravação de um Globo Repórter na rua Toneleros. Depois, Armando me fez confidências, na salinha em que eu trabalhava na emissora, talvez tocado pelas emoções da noite, talvez por Alcino ser meu amigo - escrevi suas memórias. Armando me segredou que não contou na época exatamente o que viu (...) Perguntei o que levou o repórter Armando Nogueira a contar o que não viu - "Na verdade, a cena que vi foi um fogo cruzado de Lacerda e Alcino, o major no meio", e por aí foi - num crime crucial na história do Brasil. Armando Nogueira nunca respondeu nem podia responder."

Essa narrativa a serviço do golpe contra Vargas, segundo Palmério Dória, "fazia parte de um conjunto de crimes maiores e menores que levaram Vargas a matar-se 19 dias depois. O Diário Carioca, comandado pelo jornalista Pompeu de Souza, inicialmente de feroz oposição, tornou-se verdadeira extensão da República do Galeão, aparelho policial-militar a serviço da mais cega direita, instalada na Base Aérea do Galeão, onde se torturou, barbaramente, até gente da guarda do Palácio do Catete, com o objetivo de incriminar e derrubar Vargas. E Armando contou o que convinha para os torturadores e seus superiores militares e civis."

Quanto a Lacerda, não levou tiro nenhum. Usou o tal 'tiro no pé' para posar de vítima com mais convicção, carregado no colo que foi por soldados da Aeronáutica, e assim fotografado para publicação nos jornais. "Cá entre nós -acrescenta Palmério- no tiroteio se usou arma calibre 45, com bala que teria destruído o pé de Lacerda, o que não aconteceu". Alcino João do Nascimento tem 87 anos e não abre mão de sua história.O mestre-de-obras garante: atirou, sim, no peito do major Vaz, mas nega o tiro no pé de Lacerda. Este, passou a vida explicando o porquê de nunca ter mancado,,,

Assim se faz história, diz Palmério Dória, e pergunta: "Quais razões ele tem para mentir? As razões de Armando Nogueira não sabemos, só podemos supor: muito possivelmente ajudar a derrubar Vargas".