quinta-feira, 31 de julho de 2008

Transplante movido a álcool

Seria cômico se não fosse trágico considerar inapropriada a lei seca nas estradas por dificultar a realização de transplantes de órgãos a milhares, senão milhões, de angustiados brasileiros que expõem seu sofrimento nas filas de hospitais à espera do rim, do coração, do fígado salvador, da córnea que lhe garantirá a visão etc. Pois é o que está acontecendo. As estatísticas indicam também que, com o dinheiro poupado em gastos públicos com os acidentes no caótico trânsito das cidades brasileiras, será possível a construção anual de um novo e moderno hospital a cada ano, com capacidade para duzentos (200!) leitos... Na contramão da lei seca que, indicam os dados já apurados, reduziu pela metade as vítimas fatais de acidentes automobilísticos, também sofreram queda semelhante os números de transplantes realizados nos hospitais do Rio de Janeiro. Quer dizer, com a redução das mortes nas estradas, aumentam, em igual proporção, as mortes nos hospitais, entre os pacientes que esperam na fila de transplantes vitais...
Estranho país, o Brasil, que não consegue associar à lei seca salvadora uma campanha igualmente conscientizadora de doação de órgãos, que pusesse fim à simbiose macabra da dependência da vida em relação direta da morte violenta provocada pelo excesso de álcool. Diretamente ligado ao fato real da escassez de órgãos à disposição, aparece a figura do oportunista, o atravessador, que negocia a peso de ouro a oportunidade de alguém ganhar a vez no tenebroso caminho que leva ao transplante. Assim, foi flagrado pela Polícia Federal um desses privilegiados atravessadores. Nenhum gatuno de morro, não. Nenhum cambista de esquina, não. Mas, sim, um graúdo e pomposo chefe da equipe de transplantes hepáticos do hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É preciso que se diga o nome desse solerte ex-coordenador do Rio Transplantes, do governo carioca, Joaquim Ribeiro Filho...esse filho vendia lugares na fila de transplantes de fígado no Rio. Foi preso em casa. Própria, não da mãe. O filho foi pêgo na operação Fura-Fila da Polícia Federal. Esse filho, que é médico, mas que certamente ignora o juramento de Hipócrates, desviava fígados humanos para pacientes que furavam a fila mediante o pagamento de 250 mil reais (R$ 250.000,00).

O fígado da grana

Mas o bacana é que esse filho sacana dava ares de legalidade à tramóia. Para isso, utilizava seu poder de comando e inseria na fila do SUS pacientes-fantasmas, cujas fichas indicavam alguma incompatibilidade para receber o órgão que seria transplantado. Constatada a incompatibilidade do primeiro paciente na fila de espera, o médico era automaticamente autorizado pelo SUS a indicar quem seria o beneficiário. E, obviamente, o fígado seguia o caminho do dinheiro.
'Quando quiser descobrir o que realmente acontece, siga a trilha do dinheiro', ensinava --ao investigador interpretado por Jack Nicholson--, a filha do picareta Noah no filme 'Chinatown'. A filha contracenava com o pai (Angelica Huston e John Huston), um magistral picareta que ganhava rios de dinheiro desviando água do serviço público e cobrando --como se dele fosse-- para fornecer aos plantadores de laranjas da Califórnia. Depois, se entupia de uísque com os amigos, que dirigiam pelos campos, destruindo plantações, num tempo em que Lei Seca era apenas uma coisa combatida por Elliot Ness e os Intocáveis. No Brasil, não tinha nem nascido quem viria a pensar em aplicar tal lei seca nas estradas brasileiras.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Bira, um brasileiro

Preste atenção ao morador de rua. Zele por ele. Se não puder, pelo menos não o maltrate. Nem o queira mal. Afinal, nunca se sabe qual deles poderá ser o seu chefe..., amanhã.
É comum dizer, ou ouvir dizer que o Brasil é um país de contrastes. Eles estão por toda parte: Seca no Nordeste, abundância de chuva no Sudeste; frio e gelo no Sul, caloraço no Norte; a maravilha das terras alagadas no Centro-Oeste e, também, na exuberante Ilha do Marajó; as praias da sensacional costa do Atlântico cobrindo do extremo Sul ao inexplorado Norte, e os rios com ondas que banham Belém e outras cidades do Pará, como não existem em nenhuma outra parte do mundo...Contrastes. Mas esses são visíveis, perceptíveis à sensação do contato visual. Também se pode perceber a gritante diferença entre a metrópole paulista, com sua pujança e traços futuristas, e as agruras de quem vive numa cidade ao lado de uma grande usina hidrelétrica do Norte e não tem luz elétrica em casa...Mas, tem uma coisa que é comum em toda parte: a brutal distância social provocada pela concentração de renda que põe prédio de luxo encravado em favela. Sim, porque mesmo em locais onde a favela já existia, a exigência da conurbação exagerada, que une cidade a cidade, vai explorando todo e qualquer espaço, de modo a evidenciar a arquitetura do contraste. E uma coisa é comum por onde quer que se ande por esse brasilzão: pedintes, mendigos, moradores de rua. Sim eles estão por toda parte. E não apenas nas periferias, mas cada vez mais perto de nossas casas...
Pois é. Nem sempre um morador de rua merece a pecha de preguiçoso. Isso é o que Bira ouvia constantemente. E, como não tinha o que comer, sentia muita fome. E as pessoas só diziam que era disso mesmo que ele gostava, de dormir. Mas ele deu a volta por cima. Longe de casa desde os 15 anos. Vivendo na rua nesse tempo todo, encontrou jeito de estudar pela internet. Sim, economizando um que dois reais por dia --ficando sem comer para poupar-- pagava pra navegar na internet, onde tomou conhecimento de um concurso do Banco do Brasil. Estudou. Do seu jeito: sem apostilas, sem professores, sem amigos, sem comentários. Estudou, estudou e estudou. Até que chegou o dia do concurso, e ele, Bira, morador de rua, aos 27 anos, foi parar nas páginas dos jornais. Mas não na seção policial. Na lista do aprovados num dos concursos mais concorridos deste País. O sonho de consumo de muuuita gente boa: Bira passou no concurso do Banco do Brasil. E, agora, sua vida começou a mudar. Vai assumir a vaga conquistada com esforço e merecimento. E, em breve, poderá ser o seu chefe. Cuide bem dele!

sábado, 26 de julho de 2008

Nada será como antes: sempre pode piorar

Há doze anos, o massacre de Eldorado do Carajás deixou um saldo terrível: 19 trabalhadores mortos e dezenas de feridos, alguns com seqüelas definitivas, que até levaram mais alguns à morte...Mas não foi tudo. O massacre continua a ecoar e a produzir fatos lamentáveis. Depois daquele traumático 17 de abril de 1996, o governo do Pará sancionou lei proibindo a promoção de policiais que estejam respondendo a processo na Justiça. Este é o caso dos PMs envolvidos no massacre. Apesar das condenações impostas, sobretudo aos comandantes da operação, ninguém está preso. Mas os processos estão abertos, o que mantém os PMs sob a lei que os impede de receber promoções. Acontece que um juiz de Belém não entende assim, e deu ganho de causa a uma ação movida por dez policiais militares que requerem promoção na capital paraense. O juiz, nada mais, nada menos, considerou inconstitucional a lei estadual que impede a promoção dos participantes do fatídico massacre.
O confronto ocorreu quando 1.500 sem-terra que estavam acampados na fazenda Macaxeira, no município de Eldorado do Carajás, decidiram fazer uma marcha em protesto contra a demora da desapropriação de terras improdutivas. A Polícia Militar foi encarregada de tirá-los do local, porque estariam obstruindo a rodovia PA-150, que liga Belém ao Sul do Estado.
De acordo com os sem-terra ouvidos pela imprensa na época, os policiais chegaram ao local jogando bombas de gás lacrimogêneo. Os sem-terra revidaram com paus e pedras. A polícia, então, partiu para uma ação mais violenta e atirou. Dezenove pessoas morreram na hora, outras duas morreram anos depois, vítimas das seqüelas, e outras sessenta e sete ficaram feridas.
Pois é: o juiz considera inconstitucional o fato de os policiais ficarem sem promoção enquanto o processo não tiver sentença definitiva, mas ninguém considera que fere a Constituição o fato de vários dos feridos no massacre continuarem, ainda hoje, sem atendimento médico adequado. Tem até quem esteja com bala fixada no corpo, sem condições de se tratar por conta própria, e sem que o governo responsável pela ação dos militares, lhes garanta o mínimo respeito devido ao ser humano.
Lembro bem da cara desconsolada do então governador Almir Gabriel, no dia do massacre. Ele balbuciava que o coronel Pantoja extrapolara de suas funções de comando para executar o massacre. Pantoja chegou a ser preso, e foi condenado...Mas foi tudo anulado. Também o governo elaborou a lei, para impedir a promoção dos PMs, agora revogada...É o Pará. Terra de direitos...